Ser e Ter
Originalmente publicado em www.cenadecinema.com.br (14.06.2006)
Crítica do Filme “Ser e Ter” (Être et Avoir, Nicholas Philibert, 104 min., França, 2002).
Relacionamento e Respeito
A rotina de uma escola diferenciada na região montanhosa de Auvergne, zona rural francesa, é o personagem principal deste premiado trabalho do documentarista Nicholas Philibert (Qui Sait? – 1999 – França). Com participação na seleção oficial de Cannes em 2002, prêmio César de melhor montagem e indicação nas categorias de melhor direção e melhor filme, contando também com o prêmio de melhor documentário no European Film Awards, Ser e Ter, documenta durante seis meses o dia a dia da relação entre 12 crianças entre três e 11 anos e seu professor, o Francês de 55 anos descendente de agricultor espanhol, Georges Lopez no que se pode chamar de “escola-de-uma-turma-só”. Uma situação impensável no atual sistema de ensino infantil que, após a exposição dos métodos de Lopez, nos traz argumentos que remetem a uma reflexão profunda e, por que não, reformatória.
Não cabe a este artigo debater os objetivos pedagógicos almejados por Lopez, muito menos rotular de corretos ou errôneos, e sim, analisar o filme como um todo. Porem é impossível falar de Être et Avoir (título original) sem mencionar a forma de comunicação franca, sincera, tratando cada individuo da classe de igual para igual, de forma adulta, delegando responsabilidades, inclusive a do interesse em aprender ao invés de simplesmente obrigar as crianças a absorverem o conhecimento, propostas pelo professor. As crianças não têm medo e sim respeito. Sua forma ríspida e imperativa quando há a necessidade, seu carisma e sua dedicação nos mostram uma nova forma de lidar com a educação infantil. A necessidade do conhecimento parte das crianças e o professor Lopez conduz com segurança e sutileza, individualmente ou em grupo, debates inteligentes e com a efetiva participação de todos, que muitas vezes assimilam o conhecimento sem perceber, de forma clara e intuitiva de acordo com seu interesse. Para isso Lopez utiliza com maestria as ferramentas propostas pelo construtivismo de Piaget em que o consiste na busca pelo conhecimento de acordo com a necessidade e interesse de cada criança. A mistura de faixas etárias que poderia prejudicar o andamento do processo de aprendizagem também serve de ferramenta. Os maiores ajudam os pequenos que por sua vez assimilam exemplos e interagem com crianças de interesses diferentes. É muito prazeroso acompanhar o interesse dos alunos pelo desafio e pelas descobertas, de uma forma responsável, mas sem perder o tom lúdico necessário para qualquer criança.
O envolvimento do professor com seus alunos e as expectativas depositadas pelos mesmos na figura do educador é emocionante e traz grandes reflexões sobre relações entre diferentes faixas etárias e também como o ambiente familiar influencia no desempenho do individuo na escola. Seus alunos o têm como professor, como conselheiro, como amigo, como líder. Problemas familiares são resolvidos na escola como a depressão do aluno por um pai em estado de câncer terminal. A falta de atenção da menina é conversada com a mãe e Lopez constata que o problema vem de casa onde os pais agricultores não têm tempo e nem muito conhecimento para ajudar a filha com as dificuldades encontradas no dever de casa.
Lopez proporciona grandes experiências quando leva seus alunos para passear e brincar na neve, pega o trem para visitar o colégio que os abrigará quando passarem para o próximo estágio de aprendizagem e observa as crianças interagindo sozinhas com uma foto-copiadora, gigante para crianças de 3 e 4 anos.
A despedida ao final do período letivo é emocionante tanto para os alunos quanto para Lopez, que está se aposentando e demonstra claramente a falta antecipada que sente de estar em uma sala de aula interagindo com seus pupilos. Emociona também o momento em que as crianças recebem a noticia do afastamento do professor por ele próprio e a câmera capta a angustia silenciosa dos pequenos rostos exibindo expressões de suas primeiras sensações de perda na vida.
Documentário Artístico
A dinâmica adotada por Philibert para conduzir este pequeno roteiro da vida, que fala indiscutivelmente de relações inter-pessoais e os rumos que elas podem tomar, apesar de ser um documentário, lembra muito alguns dos últimos títulos protagonizados pelo atualmente catatônico Bill Murray, como Flores Partidas (Broken Flowers - Jim Jarmusch – 2005 – EUA) e A Vida Marinha de Steve Zissou (The Life Aquatic with Steve Zissou – Wes Anderson - 2004 – EUA), em que as tomadas exageradamente imóveis por um longo espaço de tempo, tanto de belas paisagens frias de inverno quanto de expressões faciais marcantes, são uma ousada e bastante atraente para abordar conversões bruscas (ou às vezes nem tanto) ou ainda para simbolizar algum adiantamento linear na linha do tempo. A diferença é que esta película, apesar de ter um cuidado de produção e uma ótica semelhante aos de projetos alternativos de ficção, é um documentário. No início até surgem duvidas quanto a Philibert ter induzido ou roteirizado a obra pela riqueza da produção, mas logo esta teoria se desintegra quando entram em cena as crianças e suas formas de questionamentos e espontaneidade inconfundíveis.
Ser e ter é, antes de um documentário, uma obra de arte sobre a vida.
Obrigatório para profissionais da área de educação. Indispensável para a bagagem cultural de cinéfilos amantes de documentários. Referencias para documentaristas que desejam atingir a plena intimidade com o publico.
Mário Pertile
Posted on 4/10/2008 by Mário Pertile and filed under
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Ser e Ter
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Crítica do Filme “Ser e Ter” (Être et Avoir, Nicholas Philibert, 104 min., França, 2002).
Relacionamento e Respeito
A rotina de uma escola diferenciada na região montanhosa de Auvergne, zona rural francesa, é o personagem principal deste premiado trabalho do documentarista Nicholas Philibert (Qui Sait? – 1999 – França). Com participação na seleção oficial de Cannes em 2002, prêmio César de melhor montagem e indicação nas categorias de melhor direção e melhor filme, contando também com o prêmio de melhor documentário no European Film Awards, Ser e Ter, documenta durante seis meses o dia a dia da relação entre 12 crianças entre três e 11 anos e seu professor, o Francês de 55 anos descendente de agricultor espanhol, Georges Lopez no que se pode chamar de “escola-de-uma-turma-só”. Uma situação impensável no atual sistema de ensino infantil que, após a exposição dos métodos de Lopez, nos traz argumentos que remetem a uma reflexão profunda e, por que não, reformatória.
Não cabe a este artigo debater os objetivos pedagógicos almejados por Lopez, muito menos rotular de corretos ou errôneos, e sim, analisar o filme como um todo. Porem é impossível falar de Être et Avoir (título original) sem mencionar a forma de comunicação franca, sincera, tratando cada individuo da classe de igual para igual, de forma adulta, delegando responsabilidades, inclusive a do interesse em aprender ao invés de simplesmente obrigar as crianças a absorverem o conhecimento, propostas pelo professor. As crianças não têm medo e sim respeito. Sua forma ríspida e imperativa quando há a necessidade, seu carisma e sua dedicação nos mostram uma nova forma de lidar com a educação infantil. A necessidade do conhecimento parte das crianças e o professor Lopez conduz com segurança e sutileza, individualmente ou em grupo, debates inteligentes e com a efetiva participação de todos, que muitas vezes assimilam o conhecimento sem perceber, de forma clara e intuitiva de acordo com seu interesse. Para isso Lopez utiliza com maestria as ferramentas propostas pelo construtivismo de Piaget em que o consiste na busca pelo conhecimento de acordo com a necessidade e interesse de cada criança. A mistura de faixas etárias que poderia prejudicar o andamento do processo de aprendizagem também serve de ferramenta. Os maiores ajudam os pequenos que por sua vez assimilam exemplos e interagem com crianças de interesses diferentes. É muito prazeroso acompanhar o interesse dos alunos pelo desafio e pelas descobertas, de uma forma responsável, mas sem perder o tom lúdico necessário para qualquer criança.
O envolvimento do professor com seus alunos e as expectativas depositadas pelos mesmos na figura do educador é emocionante e traz grandes reflexões sobre relações entre diferentes faixas etárias e também como o ambiente familiar influencia no desempenho do individuo na escola. Seus alunos o têm como professor, como conselheiro, como amigo, como líder. Problemas familiares são resolvidos na escola como a depressão do aluno por um pai em estado de câncer terminal. A falta de atenção da menina é conversada com a mãe e Lopez constata que o problema vem de casa onde os pais agricultores não têm tempo e nem muito conhecimento para ajudar a filha com as dificuldades encontradas no dever de casa.
Lopez proporciona grandes experiências quando leva seus alunos para passear e brincar na neve, pega o trem para visitar o colégio que os abrigará quando passarem para o próximo estágio de aprendizagem e observa as crianças interagindo sozinhas com uma foto-copiadora, gigante para crianças de 3 e 4 anos.
A despedida ao final do período letivo é emocionante tanto para os alunos quanto para Lopez, que está se aposentando e demonstra claramente a falta antecipada que sente de estar em uma sala de aula interagindo com seus pupilos. Emociona também o momento em que as crianças recebem a noticia do afastamento do professor por ele próprio e a câmera capta a angustia silenciosa dos pequenos rostos exibindo expressões de suas primeiras sensações de perda na vida.
Documentário Artístico
A dinâmica adotada por Philibert para conduzir este pequeno roteiro da vida, que fala indiscutivelmente de relações inter-pessoais e os rumos que elas podem tomar, apesar de ser um documentário, lembra muito alguns dos últimos títulos protagonizados pelo atualmente catatônico Bill Murray, como Flores Partidas (Broken Flowers - Jim Jarmusch – 2005 – EUA) e A Vida Marinha de Steve Zissou (The Life Aquatic with Steve Zissou – Wes Anderson - 2004 – EUA), em que as tomadas exageradamente imóveis por um longo espaço de tempo, tanto de belas paisagens frias de inverno quanto de expressões faciais marcantes, são uma ousada e bastante atraente para abordar conversões bruscas (ou às vezes nem tanto) ou ainda para simbolizar algum adiantamento linear na linha do tempo. A diferença é que esta película, apesar de ter um cuidado de produção e uma ótica semelhante aos de projetos alternativos de ficção, é um documentário. No início até surgem duvidas quanto a Philibert ter induzido ou roteirizado a obra pela riqueza da produção, mas logo esta teoria se desintegra quando entram em cena as crianças e suas formas de questionamentos e espontaneidade inconfundíveis.
Ser e ter é, antes de um documentário, uma obra de arte sobre a vida.
Obrigatório para profissionais da área de educação. Indispensável para a bagagem cultural de cinéfilos amantes de documentários. Referencias para documentaristas que desejam atingir a plena intimidade com o publico.
Mário Pertile
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