Anjos do Sol

Originalmente publicado no www.cenadecinema.com.br (18.08.2006)

Crítica do filme “Anjos do Sol” (Rudi Lagemann).

Estréia da Sutileza
Em seu primeiro longa, baseado em reportagens e arquivos policiais resultados de nove anos de pesquisa, Rudi Lagemann pretende mais do que realizar uma obra de cunho artístico e excelente plasticidade. Utiliza estes adjetivos como contraste para a história de Maria (Fernanda Carvalho), uma menina que tem sua infância corrompida pelo ciclo violento do tráfico de menores para a prostituição infantil. As imagens enchem os olhos. E não é só mérito da paisagem, pois o que quer que seja exposto na tela, o por do sol ou uma favela na beira da estrada ou mesmo os moradores de semblante sofrido e os casebres em péssimo estado do vilarejo de Socorro, local onde se instala a “boate/pensão” – como denomina o proprietário Saraiva (Antônio Calonni) – Casa Vermelha, servem como colírio aos olhos. Tudo muito bem cuidado, desde cenários, montagens e movimentos de câmera, formando em diversos momentos diagonais harmônicas perfeitas.

Atuações
Atores que se entregam de corpo e alma aos seus papéis, com destaque às meninas, todas escolhidas em teste, com exceção de Bianca Comparato, (que faz a personagem Inês, parceira de fuga de Maria, demonstrando uma intimidade e cumplicidade ímpar para com sua amiga e que, apesar de ter um papel coadjuvante, rouba a cena em todos os momentos em que aparece) que trabalhara em alguns papéis na Rede Globo como Malhação e Belíssima. Foram necessários seis meses de ensaios e preparos psicológicos para que as meninas desempenhassem seus avatares com perfeição. Este período, segundo Rudi, também serviu para que as atrizes mirins trocassem experiências sobre vida e sobre sentimentos relativos à aspirações, angústias e desejos femininos, assuntos que seriam impossíveis dirigir sendo homem. Bianca, sendo a mais velha, ajudou bastante neste trabalho.
A caracterização dos personagens também não deixa a desejar. Saraiva, dono da boate Casa Vermelha, inspirado em um personagem semelhante do livro Damas da Noite, é um capitalista selvagem nato. Explora e se denomina empresário. Não paga as meninas e visa lucro em todas as ações dentro da casa. Seu humor negro é sublime. Por mais mau caráter e asqueroso que possa ser, consegue cativar o espectador, arrancando muitas risadas da platéia em situações tensas, por seu linguajar desbocado e violento. O papel de Saraiva foi escrito e idealizado para ser representado pelo próprio Calonni que não pensou duas vezes antes aceitar e confirmar participação no projeto. A idéia é criar um auto questionamento no expectador. Algo do tipo “como estou conseguindo gostar deste cara???”. E funcionou.
Em uma das cenas mais tensas do longa, onde Inês é severamente castigada pela fuga e mantém a cabeça erguida até o último momento, resistindo a opressão imposta por Saraiva e seus capangas, Bianca Comparato dá um show de interpretação, descarregando todo o sofrimento contido na vida da personagem casca grossa e segura de si, em um choro desesperado, deixando cair a cobertura fria e sem sentimentos que dá lugar a verdadeira Inês, indefesa e sem ter a quem recorrer.
Fernanda Carvalho consegue transmitir a inocência da criança na primeira parte e, na medida em que vai absorvendo raiva, angústia, frustrações e sofrimentos, vai transformando sua personagem (que aprende algumas coisas sobre a vida no curto período que interage com Inês na primeira fuga), desde o semblante até as atitudes, saindo da pele de criança inocente para uma mulher vivida e experiente de doze anos.
O filme conta ainda com a excelentes participação de Chico Diaz como Tadeu, um senhor de aparência asquerosa em um primeiro momento, encarregado de arrecadar e transportar as meninas pelo Brasil até a casa de leilões de Nazaré, interpretada por Vera Holtz, onde Tadeu passa de uma imagem de mercenário para um subordinado sem voz ativa. Otávio Augusto como o fazendeiro Lourenço, que compra as meninas Inês e Maria no leilão promovido por Nazaré para “presentear” seu filho em seu aniversário de 15 anos. Caco Monteiro como Tonho. Mary Sheyla como a prostituta Celeste, amiga que defende as meninas e as ajuda a fugir. Evelin Buchegguer e Rui Manthur, pais de Maria. Maurício Gonçalves como o agente de saúde que inspeciona a Casa Vermelha e a lenda Darlene Glória interpretando com maestria a cafetina carioca Vera, onde Maria procura refúgio por indicação de Celeste.

Então...
Anjos do Sol é um filme que choca pelo implícito. Que denuncia pela livre compreensão de uma linguagem esteticamente perfeita, acessível para qualquer tipo de público. Choca com aventura, com humor obscuro, mostrando tudo preto no branco, sem máscara, mas sem malícia. Uma obra sincera que confronta o expectador de forma subliminar, fazendo com que a denúncia e a sutileza tomem forma para mostrar uma realidade conhecida por todos, mas rejeitada pela maioria.

Mário Pertile

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Entrevista com Rudi Lagemann e Bianca Comparato

MP – Mário Pertile
BC – Bianca Comparato
RL – Rudi Lagemann

MP – Bianca, gostaria que comentasse um pouco como foi trabalhar tanto a questão psicológica quanto a sexualidade na preparação da personagem Inês e como foi tua relação com Antônio Calonni, tanto no filme, quanto pessoalmente?

BC – Bom, primeiro pra eu poder trabalhar esse personagem, esse filme, eu tive que dar uma distanciada da realidade do roteiro. Eu encarei como uma história de ficção e uma personagem ali naquele contexto. Eu me preparei pra isso. Eu sou muito diferente da Inês, então foram seis meses de mergulho nessa nova realidade e não fiz laboratório por que eram atrizes muito novas. O diretor nunca quis expor elas a isso. Eu era uma das mais velhas e tinha dezoito, as outras meninas eram mais novas, a protagonista tinha onze. Então a gente estudou muito, fez muitas pesquisas, viu muitos filmes, documentários, pra ter uma base.
Depois eu fiz um trabalho corporal com Helena Varvaki que é uma preparadora carioca. Aí fiz uma coisa mais psicológica mesmo com a Paloma Riani, que é uma preparadora de elenco. Com ela eu fui desdobrando o roteiro, pegando informações sobre a Inês. Aí com a pesquisa que eu tinha feito fui usando referências. O livro do Dimenstein Meninas da Noite eu usei muito, ele tem fotos das meninas. Eu usei muito essas fotos e tipo, apontava coisa que eu achava da Inês das fotos pra usar e tal. Mas assim, como eu te falei eu fui pela emoção, eu não fui muito pelo status. Até pela questão das atrizes mais novas. Eu não pensava numa cena assim, ela passou a noite toda com trinta homens. Eu pensava “ela passou muita dor”. Até porque eu não tenho essa experiência então eu tive que trazer pra mais próximo de mim. “O que que é dor pra mim? O que que é sofrimento? O que que é o limite, o ponto do limite onde você nem enxerga mais o seu limite? Como trazer isso?”, foi assim que eu encarei.
Quanto ao Calonni, com as meninas eu passei seis meses juntos, o Calonni tava trabalhando junto com o projeto então eu vi ele na hora de rodar. A gente teve uma leitura para se conhecer e eu vi ele na hora de rodar, o que pra mim foi bom porque eu realmente não tinha intimidade com o personagem do Calonni e a gente estabelecia as coisas junto, o negócio de ela encarar a imagem dele e tal. Eu admiro muito ele como ator. Fiquei muito feliz com o resultado da imagem do Saraiva. Acho que ele ta impecável, sou fã mesmo. Então pra mim foi uma honra poder trabalhar com ele e aprendi muito estando ao lado dele no set.

MP – A Inês é exatamente como está no roteiro ou tu chegaste a dar um toque teu na personagem?

BC – Sempre tem assim, até porque o “Foguinho” não tava fechado, como ele era roteirista e diretor ele acabou acompanhando nossa preparação inteira então varias coisas que aconteciam na preparação a gente foi adaptando. Chegamos a um consenso na cena do arrastão, estávamos na dúvida se era para ela “desmontar” ou se ela mantinha a empáfia. Isso a gente foi descobrindo junto. A Paloma também ajudou muito a gente nesse momento. Era o momento de ela desconstruir mesmo e foi uma coisa natural quando a gente simulou a cena em um dos ensaios, eu não agüentei e tal, e o Foguinho falou explora isso, trabalha isso, é isso que eu quero usar. Então eu diria que foi assim, meu e do Foguinho, o que a gente botou na Inês, por ele estar acompanhando a preparação.

MP – E esses seis meses de preparação foram junto com a Fernanda?

BC – Foram junto com a Fernanda em peso, toda a semana, nos entrávamos os três. Poucas vezes era eu sozinha, sempre era nós três.

RL – Ou com a Mary Sheyla também.

MP – A intimidade entre as duas personagens é muito grande, apesar do pouco tempo em que atuam juntas.

RL – Eu queria passar uma idéia de intimidade mesmo e isso é forte porque como o tema é muito pesado, há uma confiança entre elas. Se fosse um filme que fosse só a história de uma menina eu acho que ia encontrar dificuldades muito maiores de como eu ia chegar né. A coisa de você ter meninas de nove, onze anos e ter tipo a Mary Sheyla que tem vinte e dois e a Bianca com dezoito, dava a elas, às mais novas, informações que eu como homem não podia dar e trabalhar, então isso foi bem interessante.

MP – A questão da imagem no filme é um aspecto muito marcante, não importa o que está sendo mostrado, as imagens em geral sempre são lindas. Como surgiu a idéia de, para tratar de um tema tão obscuro, utilizar um lado mais poético:

RL – Porque eu acho que isso que ia tornar um filme diferente, isso está no roteiro. “Tratar com doçura com universo sórdido”. Eu achava que isso ia provocar interesse para as pessoas assistirem. Eu acho que se eu trabalhasse aquele universo como ele é, a sordidez, isso ia causar choque e repulsa. As pessoas não querem saber. As pessoas sabem que tem o assunto mas é um “não vamos tratar disso”, “não me interessa” e tal. E eu queria ME cativar, eu tinha um desafio meu autoral, pessoal, que eu queria chegar e dizer assim: Não, eu vou conseguir contar essa história de uma outra maneira, entendeu. Então era um desafio meu. Claro que depois virou um desafio de todo elenco.

MP – Até na cenas mais sofridas, é lindo como a questão da imagem se apresenta, da gosto de ver. Quando fui assistir esperava assistir algo parecido com “Contra Todos”, com ruídos e câmeras tremendo e na verdade me surpreendi por ser um filme totalmente estético.

BC – A idéia é emocionar, não é para ser agressivo.

RL – Como eu falei, eu acho que ninguém iria querer assistir isso com esse tema, entendeu. Eu fico dizendo que é o “Brincar de Cinema”. O tempo todo é uma representação da realidade o que a gente constrói ali. É simbólica né. E isso está no interesse do trabalho de artesão de quem faz o filme. Com isso a gente está muito realizado, muito satisfeito. Esperamos que o filme entrando em cartaz em todo Brasil, que haja uma resposta do público a isso. Pra mim é importante que haja uma resposta também porque eu ganhei um prêmio do ministério da cultura que pagou a metade do filme. A outra metade foi investimento sem nenhum tipo de lei de incentivo e eu adoraria que as pessoas que investiram tivessem um retorno, porque eu acho que também abre uma porta para filmes futuros, de as pessoas pensarem que é possível trabalhar um tipo de tema assim e ter resposta, pode virar uma coisa boa, bacana, para o mercado do cinema.

MP – Como surgiu o interesse de filmar esse tema especificamente?

RL – Tem a ver com meu passado gaúcho, na questão de contestação da realidade, quando estudei aqui no sul participei de movimento estudantil. Era uma formação muito, como eu vou dizer, de protesto mesmo. Era o final da ditadura então você queria contestar tudo o que acontecia. Mas aí depois tinha uma questão que me interessava que era estudar a questão de direitos humanos e primeiro trabalhei com o trabalho escravo e aí começou a aparecer muita informação sobre prostituição infantil. Aí eu disse pó, só tinha o Iracema de 1976 sobre o assunto e nada a mais sobre isso. Eu disse pó, ta aí né. Interessante é o seguinte, eu fiz o filme e agora tem vários filmes vindo sobre o tema. Isso vai ser muito benéfico, deu um “start”.

MP – Como o filme é baseado em relatos e reportagens, quando tu foste pesquisar, era o que esperavas encontrar a partir do momento que começaste a pesquisa, foi pior, foi melhor, enfim...

RL – A realidade é muito mais dura. No filme tem meninas de 11 anos, mas na realidade você encontra meninas de 6 anos se prostituindo, ou melhor, sendo prostituídas, mas se eu botasse uma menina principal de 6, 7 anos, ninguém iria assistir a esse filme. A realidade é dura também por que é muito violenta, pra elas. Eu tentei de todas as formas amenizar por que eu queria que a emoção trouxesse a reflexão, não o choque. Eu fiz essa busca o tempo todo. Por isso que a gente usa recursos assim. O filme tem um gênero de aventura, de ação, trabalha a emoção o tempo todo. É um filme que eu acho muito bem realizado no lado técnico. É a pessoa sentar ali e pensar “Eu estou vendo uma coisa que está me respeitando” de ele ter essa sensação, principalmente o primeiro espectador que fui eu né, eu queria ME respeitar.

MP – Agora sobre o personagem Saraiva. Te inspiraste em alguém especificamente?

RL – No livro Meninas da Noite, do Dimenstein, tem um personagem que é muito parecido com ele, que é dono de uma boate que falava com aquela arrogância, aquela empáfia. Eu peguei também do documentário do Eduardo Coutinho, de um coronel, o jeito que ele falava com os empregados como se fosse dono, o jeito de ele parar e tal. E aí vem o talento do Calonni né contribuindo. Eu queria um cara assim que fosse branco, de olho claro, que é a coisa do ariano né. O Calonni trouxe toda uma verdade dele de ator, a técnica, sabe, foi ótimo de trabalhar, assim como o Otávio Augusto, a Vera Holtz, a Darlene Glória, ela é um vulcão de energia. O Chico Dias.

BC – Cara, a Darlene quando entra em quadro...

RL – A câmera gosta deles...

MP – E o personagem do Calonni pode ser o homem mais desgraçado e mau caráter do mundo, ele continua sendo simpático.

RL – Isso sempre tinha no roteiro, as piadinhas, o humor, para que as pessoas estivessem vivendo uma contradição, tipo, “Como é que eu estou rindo com esse sujeito?”, “Como esse sujeito está me divertindo?” um cara tão violento, tão pérfido. É outro objetivo alcançado graças ao talento. Eu acho que o elenco é muito coeso por que as meninas foram escolhidas em teste, mas os adultos foram escolhidos pela autenticidade. Todos esses atores têm um trabalho muito autêntico.

MP – Tu já escreveste pensando nos atores?

RL – Só o Calonni e o Chico Dias, os outros vieram por indicação do produtor de elenco e a gente tinha uma lista de nomes mas sempre nesta área, deste tipo de elenco. Eu tive muita sorte de eles lerem e desejarem fazer o projeto.

MP – Este filme na verdade conta só o início da trajetória da Maria. Existe a possibilidade de haver uma continuação, ou uma trilogia sobre a vida de Maria?

RL – Quando eu estava com dificuldade para captar dinheiro para fazer o filme, até tinha pensado em fazer o que seria o depois. Aí eu filmaria tudo no Rio de Janeiro, seria mais fácil, uma espécie de Anjos do Sol 2.

BC – Mas aí eu teria que ressuscitar né??? (risos)

RL – Não tem problema, a gente faz uns flashbacks...(risos)

RL – Mas eu acho que outras pessoas vão trabalhar o tema, entendeu, eu já sei de dois filmes que estão saindo no futuro. Eu quero trabalhar em projetos sobre outros temas, talvez com enfoque também social mas com um outro tema.

MP – Pra vocês, agora como espectadores, o que acontece no futuro de Maria, depois que ela pega aquela carona com o caminhoneiro, vira adulta...

BC – Deixa eu falar, deixa eu falar (risos)...O que acontece com meninas que foram abusadas e exploradas jovens, quando atingem a maioridade? A vida afetiva, a vida amorosa delas fica totalmente acabada né, e não tem saída, você realmente continua tendo que ser prostituta, o que quebra na minha cabeça a idéia de que prostituição é uma escolha. Claro, tem mulheres que escolhem, mas tem muitas que vivem na margem da sociedade, marginais, e continuam assim. Eu não acho tão em aberto o final. Cara, é a menina pedindo ajuda pro mundo e só levavam ela de volta.

RL – Eu sempre deixei assim o final pras pessoas saírem e as pessoas pensarem. Eu acho que agora a questão da prostituição infantil tem uma cara. Eu sempre pensava isso. É por isso que eu quis um filme de ficção, pra poder mostrar a cara delas. É muito curioso e interessante saber que tem várias críticas que falam exatamente isso. Então agora o futuro dessas meninas depende da população inteira, não só das ONGs nem só dos governos, mas de uma atitude da população frente a essa questão, de tratar de modo mais sério. Que o adulto brasileiro trate a criança brasileira de uma forma mais séria. Isso vai levar muitos anos, é uma questão cultura. Não é só questão de acabar com a miséria. É realmente uma questão cultural.

Posted on 4/10/2008 by Mário Pertile and filed under , | 0 Comments »

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